A esperança para o tratamento de condições neurológicas rumo ao espaço.
- Flavia V. França
- 29 de abr.
- 5 min de leitura
Atualizado: 30 de abr.
Entenda como a neurociência, a engenharia espacial e a biodiversidade estão convergindo para uma revolução científica.
Foi a partir da dificuldade de se alcançar um modelo experimental humano relevante para pesquisas pré-clínicas, que cientistas se debruçaram em busca de novos métodos para consolidar importantes descobertas na neurociência.
Nesse artigo, contamos com a expertise do prof. Dr. Alysson Muotri, que nos ajuda a entender como a ciência foi buscando caminhos para superar esse e outros desafios, até encontrar no espaço a esperança para o desenvolvimento de estudos promissores no tratamento de doenças neurológicas, como o Autismo e o Alzheimer, entre outras.

Mas antes de chegarmos ao espaço, vamos retomar a nossa linha do tempo para entendermos a evolução do modelo científico que deu origem ao que podemos chamar hoje de “mini-cérebros”.
As limitações dos modelos pré clínicos.
A incapacidade de explorar o cérebro de um indivíduo vivo limita consideravelmente nosso conhecimento sobre o avanço do neurodesenvolvimento e das doenças neurodegenerativas. Muotri explica que a maior parte do conhecimento científico sobre doenças do Sistema Nervoso Central (SNC) em humanos são originados de estudos em tecido cerebral coletado post-mortem, os quais representam apenas o estágio final da doença, eliminando a possibilidade de explorar os eventos iniciais responsáveis pela cascata de alterações celulares que levam ao resultado final, sejam alterações estruturais ou mesmo morte celular.

Os modelos animais apresentam-se como uma alternativa, porém trazem uma limitação importante: eles estão restritos a doenças monogenéticas, limitando-se a um pequeno número de doenças humanas que podem ser modeladas. Além disso, dificuldades técnicas, diferenças interespécies e diferenças de antecedentes genéticos acabam interferindo no processo do modelo animal, mesmo no caso de doenças monogenéticas, indicando uma clara necessidade de modelos humanos.
Reprogramação celular: o início de uma revolução.
Os experimentos originais de reprogramação celular, liderados pelo pesquisador japonês Shinya Yamanaka (1), surpreenderam a comunidade científica ao demonstrar que é possível induzir células humanas já especializadas a retornarem ao seu estágio embrionário, também conhecido como pluripotente. Esse procedimento passou a ser apelidado de iPSC (Induced Pluripotent Stem Cells). Alysson explica que foi a partir desse modelo que cientistas puderam demonstrar, por exemplo, que a célula da pele de um adulto poderia ser transformada em uma célula indiferenciada, com potencial de se especializar novamente na mesma célula da pele ou em qualquer outro tipo de célula, incluindo um neurônio.
Modelando doenças neurológicas in vitro.
Alysson destaca que os experimentos de Yamanaka transformaram em realidade o sonho de muitos neurocientistas.
“A partir de células-tronco pluripotentes de pacientes atípicos, seria possível conduzir a produção de inúmeras células especializadas do sistema nervoso para aplicações clínicas in vitro, como a modelagem de doenças neurológicas e uso da biotecnologia para a descoberta ou teste de novos medicamentos”.

Na medida em que o conceito das células tronco pluripotentes foi sendo testado na neurociência, novas descobertas abriram caminho para a produção de estruturas in vitro ainda mais complexas: os tecidos neurais.
Também conhecidos por organoides cerebrais (ou “mini-cérebros”), os tecidos neurais permitem a observação de diversos tipos celulares ao mesmo tempo, organizados de forma biomimética, mimetizando o que acontece no tecido real (ou seja, o cérebro do indivíduo o qual as células foram reprogramadas). “Organoides cerebrais já foram usados para mostrar a causalidade do vírus da Zika com a microcefalia”, relembra Alysson.
Novas perspectivas para o estudo das interações farmacológicas.
“Conseguir desenvolver organoides cerebrais em laboratório foi o marco de uma nova era da neurociência, abrindo possibilidades de testes de interações farmacológicas em diferentes genomas”
Ao submeter os organóides a diferentes compostos, é possível obter indicadores preliminares e inferir sobre como esses medicamentos poderiam funcionar no cérebro humano Isso acelera o processo de descoberta de novos tratamentos, além de fornecer dados importantes para personalizar terapias de acordo com o perfil genético de cada paciente.
Muotri esclarece que a criação de modelos personalizados com base no DNA de pacientes com condições como o autismo, a epilepsia e a esclerose lateral amiotrófica (ELA). têm possibilitado estudar o impacto de mutações genéticas específicas e como elas afetam o desenvolvimento do cérebro.
“Organóides desenvolvidos a partir de células de pacientes com autismo nos possibilitaram observar diferenças estruturais e funcionais em comparação com cérebros neurotípicos" Essas descobertas fornecem pistas sobre as causas do autismo e podem eventualmente levar a terapias mais direcionadas.
O Espaço a favor da neurociência

Alysson desperta ainda mais atenção nesse mergulho sobre neurociência ao declarar que o espaço também tem sido um importante aliado no avanço das suas pesquisas. Desde 2019, ele e sua equipe de pesquisadores têm enviado organoides cerebrais para a Estação Espacial Internacional (ISS) com o intuito de acelerar o desenvolvimento de mini-cérebros e entender em um curto espaço de tempo, como diferentes compostos interagem nos diferentes tecidos neurais. Isso porque em condições de microgravidade, como acontece no espaço, os tecidos humanos envelhecem cerca de 10 anos em um mês.
Floresta amazônica: uma fonte potencial de cura.
À medida em que a ciência avança para modelos de organoides cerebrais mais complexos, que se aproximam cada vez mais da condição real de um paciente, uma importante frente de pesquisa também avança em busca de novos compostos naturais em meio à Floresta Amazônica. Em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), um grupo de pesquisadores exploram a biodiversidade amazônica em busca de tratamentos para doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer, e outras condições neurológicas, incluindo o autismo. A partir desse estudo, também sob coordenação do prof Dr. Alysson Muotri, pretende-se obter compostos potencialmente terapêuticos, para que sejam testados em organoides cerebrais enviados à ISS.

Alysson destaca o compromisso sócio-ambiental do projeto, o qual, diante da descoberta de novas drogas prevê o retorno de royalties para que comunidades originárias possam garantir a sua preservação a partir da biodiversidade amazônica.
Essa é uma aplicação prática da ciência e tecnologia que vale a pena acompanhar de perto. Cada conquista nesse projeto trará um impacto positivo na vida das pessoas que sofrem por alguma condição atípica no neurodesenvolvimento, ao lado dos seus familiares e cuidadores.
Outros projetos no mundo todos também avançam em pesquisas a partir da tecnologia de iPSC para investigar o neurodesenvolvimento humano e modelar doenças neurológicas.
Ao questionarmos o Alysson sobre como ele enxerga o futuro da neurociência, ele responde:
“O potencial da reprogramação celular parece ser de fato limitado pela criatividade humana e pelos princípios éticos definidos pela sociedade. Neurocientistas do passado não conseguiriam imaginar um cenário em que infinitas células nervosas de pacientes vivos pudessem ser constantemente geradas e estudadas em laboratórios ao redor do mundo. Por outro lado, os pesquisadores do futuro serão incapazes de imaginar a ciência sem essa ferramenta.”
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Neste livro-manual, Alysson Muotri esclarece com precisão, simplicidade e humor conceitos básicos sobre células-tronco, guiando o leitor por uma viagem no tempo, ilustrando a persistente fascinação do homem pela regeneração e a vida eterna.
Alves, Adelson; Muotri, Alysson Renato. Simples assim: células-tronco. São Paulo: Atheneu.
Referência citada no texto:
TAKAHASHI, K. et al. Induction of pluripotent stem cells from adult human fibroblasts by defined factors. Cell, v.131, p.861-72, 2007